8 de dezembro de 2006

A Partida

Thiago Kalu
Muito se passa embaixo do navio.
Flores se espalham na dança do vento.
De fato, se sabe que nada se viu.
Nem grito, nem choro um tolo lamento.

Porque a luz foi mal acendida
O remédio foi mal tomado
O lixo foi mal jogado
E muito se passa embaixo do navio

Na falta de ar mal sentida
O veneno foi mal aplicado
A morte foi mal escolhida
E a mulher se virava de lado

A sombra saiu de perto
Porque o chão foi mal pisado,
Porque o louco estava certo
E, o silêncio, mal cantado.

O sono foi mal acordado,
O presente foi mal aberto,
O segredo foi mal descoberto
E muito se passa embaixo do navio.

O homem corria e ficava mais lento.
De fato, tão pouco do nada serviu.
O Farol piscou e ficou desatento.
A água dormiu e o ferro sorriu
Sabendo que logo terá movimento
E a pergunta virá: onde estava o navio?

22 de novembro de 2006

A Primeira Vez

Thiago Kalu


O interfone soou. Olhei para o relógio na parede, um objeto antigo de meu bisavô, e fiquei espantado com tamanha pontualidade. Corri até a porta, abri-a e encostei meu ombro direito na parede. Permaneci imóvel por quase dois minutos. A porta do elevador se abriu e a primeira coisa que avistei foi a ponta de um sapato preto. Dois metros separavam nossos corpos e, durante esse percurso, creio que não havia expressões muito significativas no rosto dela. No meu, sim. Senti-me idiotizado diante da perfeição de suas formas femininas, do brilho de seu rosto, e ficava tentando naturalizar essa sensação. Não sei se consegui. Trêmulo, beijei-lhe a mão e permiti que entrasse. Passou por mim sussurrando duas ou três palavras que não me recordo e elogiou a decoração da sala. Perguntei se bebia alguma coisa e ela aceitou uma dose de Campari com duas pedras de gelo. Conversamos por algum tempo sobre música e ela sugeriu que ouvíssemos algo de Janis Joplin. Fomos até o quarto e peguei o primeiro disco de Janis que achei. Realmente não havia nada mais excitante em minha pequena discoteca. Mais dois goles no Campari e seus olhos começaram a me indagar continuamente, aspirando toda e qualquer fraqueza de minha parte, até o momento em que, com o mais puro e infiel dos gestos, minha boca cheia de dentes deu-lhe a permissão de deleitar-se sobre o meu corpo. Completamente perdido, fiquei deitado na cama, vendo-a de pé na altura dos meus joelhos. Com o corpo ainda coberto, perguntou-me se eu queria despi-la. Respondi que não, pois meus olhos me pediam prioridade na descoberta. Acabei deixando o tato em segundo plano. Sem pressa, tirou a blusa que, para mim, nem tinha cor alguma. Centímetro por centímetro foi abaixando a saia e, em seguida, desatou os nós laterais de sua roupa íntima. Passei a menosprezar fotos e vídeos, quase a odiá-los. Mordeu a ponta de minha camisa e, enquanto me desnudava, permitia que seu lábio inferior deslizasse sobre minha pele crua. Sua mão tocava-me avassaladoramente e meu sexo se tornava potável diante de tão incandescente cobiça. Não havia mais tecidos entre os dois corpos. Meu nervosismo foi vencido pelo desejo. Segurei em seus curtos cabelos pretos, trouxe sua cabeça para o alto e não hesitei em beijá-la. Ela demonstrava estar gostando tanto quanto eu. Girávamos sobre o colchão e sorriamos a cada vez que nossos olhos se cruzavam. Cada vez que eu ia, ela vinha com mais um pouco de força e simulava dizer alguma coisa. Na verdade, pedia continuidade e, como eu nem sequer havia pensado em parar, suas unhas desenhavam várias formas em minhas costas, arrancando-me as mais polvorosas palavras. Seus seios sorriam e pareciam pedir cada vez mais carícias. Minhas mãos e minha língua não permitiam que eles se decepcionassem, embora às vezes ela mesma se tocasse, mostrando que queria ainda mais. Palavrões, elogios, incentivos, tapas, mais arranhões, entradas, suspiros, saídas, costas, pêlos, sorrisos, carne, látex, carne, mãos, látex, chão, preocupação, pedidos, despreocupação, carne, carne, tempo, entradas, dança, saídas, apelos, apelos, apelos... Lembrei do relógio de meu bisavô e percebi que o tempo parecia não passar, mas passou. Primeiro ela, depois eu. Duas vozes soando em um mesmo volume e trazendo consigo a sensação mais procurada pela humanidade. Gemidos, vogais e risos. Ela deitou-se sobre o meu corpo, respirou e abraçou-me como se abraça uma criança e motivou nossos lábios a se tocarem como uma nuvem que apenas passa por outra nuvem que continuará parada. Levantou-se e, de uma forma corriqueira, alisou meus cabelos; enxugou o suor que rolava em meu rosto e sorriu. Alisou novamente meus cabelos e deu-me um outro beijo. Já não eram mais duas nuvens, mas sim terra e semente. Vestiu-se, jogou minhas roupas sobre a cama e sugeriu que me vestisse. Não atendi ao seu pedido. Conformou-se com minha inércia e estendeu-me a mão. Silêncio. Só então retornei à realidade. Abri a carteira e lhe paguei o dobro do combinado. Pediu-me uma última gentileza: um copo com água. Caminhei nu até a cozinha e fiquei observando o ritual: um gole, o comprimido na boca, outro gole e o sorriso. Andou até a porta, parou, abriu a bolsa e atendeu ao celular. Consegui ouvir algumas palavras. Eram exatamente as mesmas que escutei em nossa primeira conversa por telefone. Sorriu, acenou e bateu a porta. Eu fiquei na sala com os olhos presos ao relógio de meu bisavô. Tranqüilo, sereno e realizado. Em momento algum pensei em ter filhos com ela e achava bom saber que uma porção de minha vida estaria morta dentro de sua vida morta. Viva!

27 de outubro de 2006

Fôlego de Dragão

Thiago Kalu



Nesse momento, nada mais importa. Meu cigarro continua aceso e metade do gelo já derreteu no copo de vinho. Em meio à escuridão do quarto, a claridade da tela destaca o percurso da fumaça, causando a impressão de que o gelo derrete cada vez mais rápido. Mas não é o gelo. Pelo menos, não o que se encontra no vinho. Meus olhos prendem-se, oscilada e repetitivamente, em duas letras do teclado. Duas contém uma e, contém, outra. Nada mais a falar. Cheiro de cigarro apagado. Sinceramente, me rendi. Fui surpreendido por uma bala perdida no meio de um deserto. Mais detalhada e verdadeiramente falando, ela se encontra inerte a um palmo de minha testa, dando-me a chance do desvio. Impulsivamente, sempre recuso e ela torna a me dar outra chance. Até agora, teve piedade de mim, mas não sei por quanto tempo. Fumaça na tela. Meu peito queima e, fora do quarto, a chuva cai incessantemente. Queria saber se ela está ouvindo o barulhinho bom que os pingos estão fazendo ao se chocarem com o chão. Teria de saber se ela está acordada. Além disso, eu nunca morei acima do terceiro andar para ter certeza de que dá para ouvir. Cheiro de cigarro apagado. Minha mente sempre foi repleta de incertezas. Sinto-me cada vez mais covarde e minha covardia é pensada, planejada. Isso me agonia. Deixei de acreditar no tempo. Logo ele, que sempre fora meu maior aliado. Competindo com o barulhinho bom dos pingos da chuva, apenas o ruído das teclas e a voz de Chico Buarque que ecoa em meus ouvidos "tira as mãos de mim, bota as mãos em mim...". Riu. Fumaça na tela. Ela na mente. Minha única certeza é que eu nunca tive tanto medo do futuro, mesmo sabendo o que está por vir. E virá. Talvez por minha covardia em achar mais fácil viver sabendo o que acontecerá. Correr para frente é sempre mais fácil, o difícil é correr atrás. Cheiro de cigarro apagado. Como pode ser tão linda? Como posso desejá-la tanto, se mal a conheço? Como posso ser tão fraco? Logo eu que comparava as mulheres às caixas de fósforos. Deve ser por isso que fiquei tão feliz na última vez que vi o sol nascer. Ela é sol. Ela queima, derrete o gelo. Fôlego de Dragão. Fumaça na tela. Em uma noite fria, nada melhor que um gole de vinho quente. Isso mesmo: tinha esquecido dele. Não conseguia parar de pensar no sabor do beijo, na sensação de cada toque, como se eu fosse explodir e na essência de cada olhar no final de tudo. Não consigo mais ser egoísta. Cheiro de cigarro apagado. Não consigo parar de pensar na calmaria que o seu sorriso me traz. E é exatamente com ela, a calma, que preciso lidar. Porque não posso mais escrever. Não caberia; não terminaria; não conseguiria dizer tudo que ela precisa saber e não alcançaria o que ela merece. Será que ela mostrará para alguém? Será que sorrirá? Somente ela sabe disso. Somente ela conseguiu isso. Somente ela poderá rir. Agora, lembrei exatamente do seu sorriso, cada mudança, cada regra, cada um. Fiquei mais calmo e vou conseguir parar de escrever. Preciso parar. Não confio mais no tempo e ele pode vingar-se de mim deixando a bala seguir seu rumo antes que eu dê o gole final no resto de vinho. Chega de fumaça na tela. Vou tentar enxergar a fumaça no escuro do quarto. Tenho até o nascer do sol.

26 de agosto de 2006

Cegueira

Thiago Kalu


Os olhos nunca mentem. No máximo, enganam. Minha única certeza é que o medo imperaria se não confiássemos tanto nos olhos. Não sei se os cegos têm medos. As vozes mentem e, no momento, ouço vozes que me trazem um prazer constante oriundo do meu suicídio paulatino. O tempo é um dos meus maiores amigos. Talvez esteja doente, e isso dói. Dói muito. Talvez eu carregue em meu peito, até meus últimos instantes, a visível lembrança de uma das mulheres que pude amar por alguns momentos (minutos ou infinitos). O sorriso é a excepcional esperança de uma saída sem dor (minto estupidamente). Não quero mais sentir as verdades que os olhares me entregam como se eu fosse um gigante. Sou fraco. Todos pensam o inverso. Mas isso não tem importância. Sofro, derreto, morro (aos poucos e sempre). Meu sangue só pulsa por poucas palavras pausadas. Tudo pensado para pedir lembranças inválidas.

25 de julho de 2006

Soluço

Thiago Kalu

Cartas de amor têm de ser escritas à mão.
Como o quadro que mostra as pinceladas do pintor;
Como cada entonação nas sílabas do trovador;
Como cada gesto que vem do ator,
Mostrando riso ou pranto na respiração.

Cartas de amor têm de ter cheiro de lágrima rolada.
Cada verbo tem de conter, no mínimo, uma estória.
Cada ponto, cada vírgula, a erupção de uma glória.
As cartas querem impulsivamente ficar na memória,
Mesmo quando rasgadas, queimadas ou jogadas fora.

Onde há vida, há poema;
Onde há palavras, há problema...

19 de julho de 2006

É Foda

Flávio Bustani











é sexo
é foda
é fricção
é salitre corrosivo
é mato umedecido
é mal e bem
é natureza
é vai e vem
é incerteza

é sexo
é foda
é fixação
é ação permanente
é fixamente
mente tetraplégica
folia da carne
sangria do deleite

é sexo
é foda
é fermento de bolo
é fogo de cozer pão
é sim e não
é coxa e peito
verbo mais-que-perfeito
é barba, cabelo e bigode
é satisfeito

é sexo
é foda
é verdade mentirosa
mentira carinhosa
visão desajustada
de quem não vê mais nada

é sexo
é freud.

19 de junho de 2006

A Moeda


Thiago Kalu
A cada sorriso: mais dores.
As mão ocupadas.
O adeus aos amores.
A queda da escada,
No primeiro degrau.
O brilho ofuscado.
As mãos ocupadas.
O Janeiro nublado
E a alegria poupada:
Tanto faz, tudo é igual.
Os segredos que são seus, mas que nem você sabe.
Tudo aquilo que cabe, mas não está em suas mãos.
É que, às vezes, é preciso olhar no espelho em que o outro te vê
Para sentir as verdades com as mãos à vontade.
Sorria: hoje vai chover!